Monday, July 03, 2006


O REFLEXO NO ESPELHO DO ÍNDIO

Pouco se sabia do que haveria ali, de fato, além de ser mais uma exposição da cultura indígena brasileira. E para a grande imprensa foi isso mesmo o que aconteceu.
Divulgada em pequenas letras, num tijolinho, destes que preenchem os periódicos: a exposição começava tal dia e acabava num outro mais tarde, ocupando o segundo piso do MIS. Era 1991.
Poucas pessoas circulavam pela montagem. Bastante modesta, diga-se, se comparada com a grande mostra, que recentemente aportou na Oca, em 2000, por ocasião das comemorações dos 500 anos deste país. Escrevo em 2002.
Poucas peças representavam a cultura de muitos povos. Ricas em detalhes, como sempre, exibiam silenciosamente sua beleza exótica aos curiosos olhares urbanos.
Arcos e flechas, colares e pulseiras, brincos também, acompanhados de etiquetas indicando a origem e nome das peças. Ao lado, numa sala improvisada, algumas estavam à venda.
Arcos e flechas, colares e pulseiras, e sobretudo brincos, estes últimos faziam sucesso junto ao público jovem.
-- Quanto custa?
-- Será que tem desse de conchinhas com penas vermelhas?
-- Tem desse, sem penas? Não dá prá tirar, e fazer um desconto? Faz um bom preço que eu levo dez...
Moitará é nome que vem do Alto Xingú.
É nome de festa entre povos, que surgem do interior da mata e trazem suas riquezas. Trocam de tudo, dão de presente também quando desejam, e não trocam se não quiserem. Moitará tem disputa do Huca-Huca. Tem flauta soprando som nos ouvidos dos homens e dos bichos. E tem dança, muita dança.
Mas pouco se sabia ali do Moitará... que era nome de índio, que era luta de índio, que era enfeite, que era índio que fazia. Sabia-se que ali tinha coisa boa, de madeira e concha, era bonito, caro, e que às vezes combinava com a roupa. Caia bem na moda da hora.
Poucos entraram e saíram ali naquele dia.
Um pequeno cartaz dizia que viria um índio à noite e conversaria com quem estivesse lá.
Poucas pessoas permaneceram, e somaram-se à outras poucas que chegaram.
Contavam-se dez ou doze talvez. Treze no máximo.
Já não havia mais aquele comércio, aquele interesse. Ficou um silêncio paulistano na sala.
O índio chegou. Vestia calça e camisa branca. Pediu logo para tirar o chinelo do pé, em voz muito baixa. Não tinha arco e flechas, não tinha brinco nem pulseira, mas se via que era diferente de todos. Um índio de verdade, os olhos não negavam.
Sentados naqueles banquinhos zoomorfos, a pedido do índio, os brancos alinharam-se para a prosa. Fala pausada, mansa e vigorosa, as palavras soaram leves, inaugurando com uma brincadeira dele.
-- Esses bancos são feitos para voar. Os que sentam, voam no espírito do bicho e vêem outras coisas. Coisas que os bichos vêem... só os homens sentam neles, por isso fico meio envergonhado de ver vocês aí misturados, homem e mulher nos bancos. Isso seria muito moderno na minha casa, entre meu povo. E riu com o corpo todo.
O silêncio deu lugar ao riso de todos. Riso do silêncio manso e vigoroso do olhar do índio.
Usava calça e camisa, e era um índio verdadeiro. Se via isso nele de verdade.
-- Esse nosso encontro, pela primeira vez aqui na cidade de vocês, é a forma que nós vimos de dizer outras palavras sobre a vida dos povos ancestrais desse país. Um mundo que tem mais de quarenta mil anos de história encoberta por florestas, e permanece encoberto à ciência moderna. Histórias que ouvi dos meus ancestrais, e que eles ouviram dos ancestrais deles.
Olhava e dizia como quem é muitos além de si, ali naquele lugar. Não havia mais nada que pudesse assemelhá-lo a nós, os brancos, a partir desse instante. Falava em português, melhor do que a média dos brancos, mas sua fala dizia coisas de uma forma diferente. Dizia com os olhos dele. No seu silêncio em nós, algo verdadeiramente diferente.
-- Meu povo foi extinto em seus livros de história. Não posso explicar o que isso me faz sentir, me desculpem, mas digo assim mesmo, que a verdade é que estamos vivos.
Somos poucos entre as nações grandes. Mas nossa história é grande como a de poucas nações. O governo brasileiro declarou guerra contra nossa nação no fim de 1800, e guerreamos corajosamente contra as armas brancas, conquistando várias vitórias em batalhas lideradas por um grande homem de nosso sangue. Em nossa história, ele é conhecido como vocês conhecem os heróis de seu povo. Vocês não precisam saber seu nome, isso não faz sentido para nós. Mas foi um grande homem, e foi morto defendendo seu povo nas matas que hoje são parte dos estados brasileiros do Espírito Santo e Minas Gerais. Vivemos ali, como fizeram outras nações ancestrais, durante muitos séculos. Hoje, sabemos que somos vinte famílias. Nossa vida mudou muito, nossas danças, nosso canto e nossos filhos,
não somos extintos. Há muito para contar para vocês.

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