Monday, September 19, 2011

Sobre todas as coisas - Parte I


            “Antes de tudo...”assim pode-se iniciar um discurso sobre o que, “depois de tudo” dito, nada do que se disse refere-se a origem “disto” (o quê?). E então, sobre o “de onde é tudo isto”, nada resta, salvo termos que aceitar a priori algo que sem referir-se a um ponto de partida, algo que nos leve a esta fonte ( há alguma fonte?) de onde [tudo] irrompe como uma "coisa verdadeira", mas que, em verdade, de imediato só o é no próprio discurso, ou seja: na consciência.
            Após este início truncado, não por acaso, e talvez inóspito para uma maioria dos leitores, prosseguiremos numa investigação, na qual nem sempre há lugar para todos, sobretudo, para aqueles nos quais repousa aquela solene segurança sobre todas as coisas acobertada pelo manto da razão instrumental. O texto nunca irá além dela caso se queira a segurança linear de um domingo à tarde em frente a tv.
            Segue-se aqui em vão, mesmo porque seria contraditório buscar justamente “um” sentido em detrimento de “todos os outros” que poderiam levar a lugares tão belos tanto quanto qualquer deles.
            O percurso é deste instante para frente, descomedido, improvável e estranho, posto que se não o for, nada de novo poderá vir a ser novo. E sendo assim, a única justificativa para percorrê-lo é não buscar por nada, na medida em que fazê-lo já imputa em plantarmos em nós aquilo que não pode ser novo jamais.
No entanto, um paradoxo nos acompanhará sempre ao lado esquerdo, numa espécie de oposição sistemática, fundante da nossa condição de falta de controle permanente sobre a consciência, a saber, o paradoxo de não podermos nunca partir do zero enquanto nos atermos ao pensamento, pois todo pensamento visa um termo de comparação entre termos, atributos, valores..., iniciando, deste modo, nossa jornada investigativa necessariamente de uma reminiscência.     
            Portanto, é deste mesmo lugar, supostamente, inóspito à razão, cientificista ao menos, que diremos com naturalidade, que só nos é possível afirmar da consciência, que é “a partir dela e nela que estamos aqui” - neste estranho e indefinível campo existencial dominado pela dimensão do tempo e espaço. Credita-se, portanto, que neste “aqui”, inóspito ou não, às vezes tão pleno para alguns, ora nem tanto para outros, inicia-se e também justifica-se (permanentemente) o “tudo ser”.
Dito assim, e considerado uma obviedade para aqueles que crêem que é “lá” onde repousa uma possível essência e ainda um sentido de ser das coisas, migramos para um dos fenômenos que podem passar ao longo caso não se aponte de imediato a sua importância. Neste lugar, a que me refiro ser consciência, concomitantemente se instala um estado de ambivalência [e aí surge o inóspito da questão], porque o que em verdade se diz ser um aqui,é também umlá estar”, que  situa-se demasiado distante, algo que de algum modo não coincide inteiramente com o sujeito, mas que “é ele”. Não pode coincidir com o sujeito, pois claramente mostra-se ultrapassando-o nas duas dimensões, no tempo e no espaço, dificultando a linearidade dos recursos discursivos ordinários do “aqui agora”.
O sujeito consciente de si desdobra-se e projeta-se não só em seus períodos históricos, pela memória e pela imaginação. Experimenta pela primeira as sensações de “ter sido e estado”; e pela segunda, de “poder vir a ser e estar”. Numa e noutra o sujeito afirma sem problemas que “foi” ou que “será”, sem deixar de ser o que é no mesmo instante em que faz a afirmação. Poderia se dizer disto, que há nele, em sua memória ou imaginação, algo dele que já não é ou que nunca foi mas que sem dúvida “está lá”, neste istmo ligado ao continente do presente pelo poder da vontade própria.  
Dir-se-ia também, sem nenhum problema, que isto não implica num paradoxo, pois ser e estar são estados que a rigor se dão de muitos modos diferentes, e nem por isto, geram algum conflito enigmático. Afinal, quando se diz que o sujeito está ali, refere-se a um corpo, a uma pessoa que possui uma identidade, e que “de fato” ocupa um lugar num espaço e tempo determinados. E que outra coisa é recorrer à memória ou imaginação para afirmar uma presença, neste caso, uma presença que é real, sim, mas que é uma figura mental, e sendo fruto de uma atividade mental, escapa das mesmas leis que regem os corpos físicos, e só por isto, e na linguagem, podem sugerir algum paradoxo.
Mas aquilo que nos dá a certeza da existência física não é justamente a consciência? E sendo assim, como e porque seria preciso distinguir em níveis de “ser e estar” de modo a deslocá-los para instâncias diferentes? Não é esta, por natureza, uma operação que acaba por estabelecer uma hierarquia perversa à grandeza da consciência, e consequentemente, que reduz a experimentação dos modos de ser e estar “mentais” a um critério alheio e estranho às suas características, a saber, o do materialismo?
Finalmente, como assentir seguramente que a realidade é cindida, e que de fato, “ser e estar” são modos regidos por divisões (naturais?!) dadas ou no mundo físico ou no mental, sendo estas mesmas considerações (válidas!), resultados de uma operação conjunta (física e mental) de poder reter aspectos, atributos ou “percepções” destes estados de ser e estar? Porque seria prioritário o valor de uma apreensão, a do mundo físico, em detrimento da outra?
Fosse o valor hierárquico adotado o material, sendo o único e exclusivamente aquele que garante os fundamentos ligados à sobrevivência do sujeito, e teríamos que discutir o que é sobreviver, o que nos lançaria num vôo circular arriscado para esta altura de nossa investigação. Mesmo assim, considerando a matéria a fonte da consciência, isto é, de o mundo externo é a origem do que existe para os sentidos e dele decorre a articulação para a linguagem, voltamos à necessidade de refletir sobre a condição em que isto se efetiva: de que é pela via das operações mentais, ocorridas neste sujeito, que se dá o mundo. Um cego de nascença pode “ver imagens mentais” que não somos capazes de conceber por não possuirmos termos de comparação, e isto não nos leva a negar que ele possa afirmar serem absolutamente verdadeiras para si.  E do mesmo modo, não se admite ser um “lugar”, referindo-se a uma imagem mental, sem rebaixar seu estatuto, quando somos inquiridos sobre a validade desta experiência em relação a nossa “sobrevivência”. Somos levados a crer que a validade do mundo material é preponderante para a sobrevivência, com base na obviedade das conseqüências de não observar leis físicas. É natural não meter a mão no fogo, ele de fato queima.
Mas a angústia asfixia e o ódio também pode queimar, mesmo sendo apenas motivados por memórias ou figuras imaginadas, e não deixam de ser muito reais para quem os sente. Teríamos adentrado num erro categórico, alinhando provas de ordens diferentes para justificar uma premissa falaciosa? Analisemos.
“Ser e estar” diante de uma chama que arde nos leva a inúmeras considerações acerca da natureza do fogo. Que ele tem cor, temperatura, extensão e intensidade, que possui uma forma, admitimos vários fatores à sua existência real. Facilmente chegamos a um julgamento sobre o que é o fogo, e nada nos convence de que poderíamos colocar nossa mão sobre ele sem nos queimarmos. O fogo é um fenômeno de combustão, uma reação química regida por leis definidas. O fogo é também uma descoberta vital, sem o que a espécie humana não teria sobrevivido neste mundo ou, ao menos, não conforme o desenvolvimento que atingiu. O calor do fogo, portanto, uniu homens ao seu redor, e alimentou prazeres para além das necessidades da carne.
O fogo assume neste instante, quando ultrapassa as limitações de sua funcionalidade e potências relativas ao corpo do homem, um outro estatuto, e alça vôo para atingir rápido a grandeza de um deus para o homem: ele é o Sol. É centro de um universo no qual a casa dos homens está ancorada, bem como é a fonte primária de toda a chance de vida que habita esta casa, uma morada que abriga muitos outros seres além do homem.    
Sendo um deus, o fogo consubstancia sua existência em múltiplas formas de ser e estar, é assim, a um só tempo uma mera chama, e é também o centro mantenedor da vida de um planeta inteiro. Dizíamos antes, sobre a possibilidade de um erro categórico, mas como pode se errar senão quando assentimos com um critério único de validade? Seria justo diante de nosso propósito, simplesmente dispensar todo o percurso que ergueu a figura de um deus do fogo e sua magnânima aura, para nos fixarmos às suas condições físico químicas definidas no escopo de uma linguagem técnica? Por que o faríamos?
Por hábito?
Por censura?