Friday, June 05, 2009

IMAGENS E VIDA TRADICIONAL AFRICANA


"Se queres saber quem sou,
Se queres que te ensine o que sei,
Deixa um pouco de ser o que tu és,
E esquece o que sabes".
Tierno Bokar, o sábio de Bandiagara


É preciso afirmar que quando tratamos de conhecer o que é a tradição em relação à história africana, antes temos que considerar a palavra falada, na medida em que é na oralidade que está realmente a fonte que revela a profundidade da complexa rede simbólica que manifesta o sentido da “vida africana”. Portanto, antes é preciso saber ouvir.

“Nas tradições africanas - pelo menos nas que conheço e que dizem respeito a toda a região de savana ao sul do Saara -, a palavra falada se empossava, além de um valor moral fundamental, de um caráter sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela depositadas”.
Hampaté Bâ - in Introdução à Cultura Africana. Lisboa: Edições 70, 1977

A voz da África tradicional, quando soa, de imediato nos encanta, emerge vibrante em meio ao intricado emaranhado de símbolos e ritos que sustentam o rico universo espiritual do povo africano. Nesta esfera orbitam as palavras e nomes, em torno das imagens dos mitos da criação, dos deuses, dos ancestrais fundadores dos povos, detentores dos conhecimentos esotéricos, que sobrevivem graças à transmissão direta entre as gerações, que desde os tempos remotos ultrapassaram as dimensões temporais e ligaram as épocas. São segredos vivos, portanto, vozes ecoando nos discípulos de mestres ancestrais, vivos em homens que se mantém dedicados no cumprimento de um destino cósmico, no qual, são a um só tempo os guardiões dos mistérios ancestrais e a própria ancestralidade futura. Sendo os herdeiros deste saber, estes homens são, já em vida, membros de uma comunidade de espíritos orientadores das futuras gerações, constituindo junto destes e de todos os demais elementos da cultura, uma só totalidade, na qual se forja a identidade africana.
O que é possível saber sobre a África advém da compreensão dessa realidade integrada, da diluição das dimensões espaço tempo, da liberdade de comunicação entre as esferas material e espiritual, do permanente vínculo entre o presente e o passado transformados nos objetos num só amalgama. Estamos assim, enquanto pesquisadores, diante de uma condição inexorável: para ascender à esta ancestralidade africana temos antes de deixar de ser interpretes para apenas vir a poder “ouvi-la”.
Assim, só quando imbuídos de um olhar liberto de preconceitos, é que entramos no universo dessa produção material, só quando, antes de os consideramos uma materialização similar à nossa noção de arte, encontramos, justamente no silêncio de uma máscara ou de uma cabeça em terracota, a mesma eloqüência da história contada à luz do fogo por um destes anciãos. Podemos então, nesta condição, apreender imediatamente da visão, já não da máscara, mas do ente em si, a sua incrível força expressiva, e finalmente, sermos envolvidos por sua força vital, que nos lança num estranhamento quanto à própria natureza dessa observação, e da que é a essência do objeto.
No âmbito da apreciação descomprometida, do leigo, sabemos que os séculos de hábitos reiterados moldaram a cultura moderna, e conseqüentemente, nosso temperamento e disposição para com a arte.
Em geral, vemos o que queremos, e disto que vemos, pouco reflete o objeto em si, porque na verdade, antes da apreensão direta de uma visão inédita, buscamos no objeto observado aquilo que já conhecemos , buscamos encontrar na máscara ou na cabeça de bronze, aquilo que nos desperta para o mesmo prazer de conhecer as formas, a beleza, harmonia, identificarmos a técnica e maestria, enfim, gostamos muito mais dos processos intelectivos que iniciam com a visão. Preferimos reconhecer, antes de ver.
Sendo ocidentais, somos filhos da racionalidade grega, do escrutínio lógico analítico, da comparação e de seus desdobramentos filosóficos e científicos na modernidade, e por isto, o que está para além dos limites da razão nos soa estranho.
Esta diferença substancial no modo de relação com aquilo que apreendemos das coisas do mundo, é que nos impede de ascender ao puro conhecimento da produção material africana.
Não podemos compartilhar dos mesmos conhecimentos porque não compartilhamos dos mesmos sentimentos, um abismo temporal nos distancia deste mundo onde homens e deuses, vida e natureza são partes indissociáveis de um só destino.

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